Pesquisa e relato de experiência
No setor de queimados do hospital das clínicas, conheci uma jovem que estava com o corpo todo abaixo do pescoço tomado por queimaduras graves e cobertas por ataduras. Olhei determinada em seus olhos, ciente de que ela precisava de algum tipo de contato para além do acontecido, mas que eu também considerasse aquele trauma, aquela dor. Conversamos um pouco e me chamou atenção o fato dela ser tão jovem, 19 anos e muito inteligente. Conversamos sobre a vida, a infância e ela me revelou que adorava bichos e que se tivesse a chance de voltar a estudar faria faculdade de veterinária. De repente, no meio da conversa, uma história chegou para mim: contei um mito Inuit em que o corvo (meio bicho, meio gente, meio Deus) cria tudo que existe na Terra e que, um dia, passeando de canoa no oceano e desejoso de conhecer a sua criação de perto, encontra uma imensa baleia e consegue entrar dentro da barriga dela. Lá, no centro da baleia, conhece e se apaixona por uma linda jovem que dança com os pés e mãos amarrados ao coração da baleia. Quando a baleia nada rápido, a moça dança no mesmo ritmo, quando a baleia descansa, ela dorme também. E foi em um desses momentos de descanso que o corvo apaixonado segurou a moça e saiu voando com ela pelo buraco por onde sai água da baleia. Os fios ligados ao coração da baleia se romperam e a menina vai ficando pequena e desaparece com o vento. O corvo naquele dia aprende sobre a morte e sobre um certo fio invisível que ainda o conecta à baleia e à menina.
Fez-se silêncio no quarto e a moça disse para ela mesma: “ele não podia ter feito isso...” Senti naquelas palavras a tomada de consciência sobre um terrível segredo, partimos logo para outro assunto quando ela me contou sobre o seu filho e como ela era bonita antes do “acidente”. Em seguida, disse que também se achava inteligente e estava com muita vontade de voltar a estudar. Sai do quarto muito emocionada com a capacidade do ser humano de rever o que foi para, sensivelmente e com a sabedoria do coração, abrir espaço para o que ainda pode ser.
Muita coisa aconteceu durante e depois desse encontro.
Escolho falar de apenas um aspecto, de uma peculiaridade do trabalho do contador de histórias em ambiente hospitalar: de tudo que as histórias fazem por nós e em nós, existe nesse contexto uma peculiaridade que é de vital importância - a possibilidade de imaginar e de ser Outro. Quando ouço ou leio uma boa história saio do meu lugar de origem e de mim mesma, vejo o mundo de outro modo, com outros olhos.
Essa possibilidade de ser outro nos resgata do tempo de Cronos, do tempo da morte, e nos temporiza no tempo orgânico da eternidade. É o momento do once upon a time, ou seja, de estarmos a salvo acima e além do tempo. Esse movimento que as narrativas proporcionam nos mostra saídas, as portas abertas, fornece esperanças legítimas que nos impulsionam a viver mais e melhor.
Para falar desse sentimento e possibilidade de ser outro (s), gosto muito da imagem/do mito do Herói Perseu que, munido de suas sandálias aladas e um escudo de bronze consegue decepar a cabeça de Medusa. Para matar Medusa era preciso evitar olhar para o seu rosto, que tinha o poder de petrificar quem o fitava. Perseu então desferiu o golpe olhando a Górgona refletida em um escudo reluzente, presente de Atenas.
A doença, o contexto do hospital, ser visto e tratado como paciente muitas vezes é como olhar diretamente nos olhos de Medusa, é enfrentar uma situação amedrontadora e se sentir alijado de suas vontades, desrespeitado na escuta de seus sentimentos, estar isolado de seu grupo social, “petrificado” em uma situação em que os pacientes e acompanhantes estão reféns de algo amedrontador. Nessa formulação, Medusa simboliza “uma autoimagem que petrifica pelo horror, ao invés de esclarecer de maneira equânime e sadia”. (BRANDÃO JUNITO, 1984).
Esclarecer de maneira equânime e sadia seria ver o doente como uma pessoa única que sofre, mas que tem uma história, que demonstra uma maneira particular de falar e de ser ouvido. Seria, enfim, buscar uma relação pautada no reconhecimento e no diálogo com o outro como Ser Pessoa (o que ultrapassa a sua condição atual de estar “paciente”). O olhar petrificador é aquele que coisifica, que busca delimitar com exatidão algo a ser explorado como o seria em um experimento, espelhando assim o paciente apenas como um diagnóstico a ser tratado exclusivamente com remédios e cirurgias.
Sabemos que ações artísticas no ambiente da saúde podem promover bem-estar e alívio psicológico. Em princípio, porque o artista deve ter o cuidado de se comunicar com o que é mais vivo nos indivíduos, com a sua integridade e não apenas com sua doença, mas como isso acontece? No mito utilizado como metáfora auxiliadora, Perseu não deixa de olhar para Medusa, para a enfermidade, a dor, a angústia, mas a sua visão é indireta: nessa formulação, o espelho do escudo de bronze é o espelho da arte que reflete múltiplas dimensões da Medusa.
O escudo de Perseu - metáfora para a interface da arte - possibilita uma visão indireta e prismática, caleidoscópica da realidade. Quando ouvimos uma história, o fazemos com todo nosso ser sensível. A história contada fala a todas as dimensões do ser humano: afetiva, volitiva intelectiva (GALLIAN, 2017). Ela em si é uma experiência estética. Ao usar o termo “experiência estética”, entendemos a noção de estética como “estesia” que vem de aisthesis e nomeia nossa faculdade de percepção pelos sentidos, nossa capacidade de sentir com e pelo corpo. Quando somos tocados por uma tal experiência geramos em nós novas possibilidades de pensar, de mover o corpo, de sentir, de ver o mundo.
Abrir, expandir, reconhecer outras possibilidades de viver, estar presente em um determinado momento da vida é tornar-se mais humano, maior e mais próximo do que ainda podemos ser. Essa ideia da Humanização como um processo, um movimento de ampliação do que somos, encontra uma justa formulação na frase de Montesquieu, em seu tratado sobre O Gosto: “a ampliação da esfera da presença do ser”.
Para Montesquieu, humanizar-se é ampliar experiências sensoriais, afetivas, os pensamentos, extrapolando, assim, os limites impostos pela realidade da vida. Montesquieu considerava a viagem como um meio privilegiado para a realização deste processo de ampliação do ser que caracteriza a humanização. Contudo, essas viagens podem ser compreendidas para muito além do sentido físico e material do termo, pois toda experiência estética não deixa de ser ela mesma uma viagem.
Nesse sentido, ouvir uma história poderia assim provocar um efeito mais mobilizador e humanizador do que uma viagem real. É isso que o Herói Perseu faz quando olha Medusa pelo escudo de bronze, ele consegue pelo próprio movimento de se deslocar, voando com suas sandálias aladas, ver o monstro indiretamente e de maneira mais abrangente, consciente e criativa. Mais adiante, o mito nos conta que Perseu descobre que o sangue que escorreu do pescoço do monstro tinha propriedades mágicas: o que correu da veia esquerda era um veneno mortal, instantâneo; o da veia direita, era um remédio salutar, capaz de ressuscitar os mortos. Muitas vezes, quando nos deslocamos por meio da arte, expandimos a esfera da presença do nosso ser, conseguimos olhar para o sofrimento e atuar junto com o doente e a equipe de saúde em um processo de cura, conseguimos, portanto, enxergar o remédio onde antes só havia o veneno.
No relato de experiência descrito acima, a jovem por meio da escuta da história narrada, se viu, olhou para a sua vida/história de maneira ampliada, ressignificada, enxergou possibilidades adormecidas de alguma forma se sentindo mais atuante, participante do seu processo de cura.
Volto para a pergunta que dá sentido a esse texto: qual é a peculiaridade e utilidade do trabalho do artista, principalmente do contador de histórias?
O contador de histórias em ambiente hospitalar enxerga e se afeta pela dor, solidão e angústia, mas sempre com a esperança de que encontrará por meio da arte uma brecha, um espaço desimpedido para que o fluxo do imaginário espelhe um sentido maior, mais amplo e profundo sobre essa terrível Medusa que por vezes nos espreita, na existência terrena.